OS SANDINISTAS ACELERAM O PASSO – O dia a dia de um processo revolucionário
4 de julho de 2024A GÊNESE DAS FACÇÕES CRIMINOSASComando Vermelho e Terceiro Comando
15 de outubro de 2024De Arquimedes Martins Celestino[1]
Ensaio publicado em novembro de 2023 na revista Trabalho Necessário (v. 21 n. 46 (2023): Trabalho, história e memória dos povos de “Nuestra América” – Tomo I) da UFF.
Link do ensaio: https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/59195
Link do PDF: https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/59195/35532
Resumo
Este ensaio debate a efetividade e atualidade do conceito de Correspondência Internacional em sua inter-relação com a Solidariedade entre os Povos. Relata a criação, durante os anos 60, 70 e 80, de uma rede de ação política e informação dos movimentos populares latino-americanos que se utilizava da correspondência internacional como ferramenta de solidariedade. Expõe o conceito de registro bibliográfico e o seu papel na perpetuação da memória e exemplifica isso através do registro de um conjunto de obras de correspondência internacional da rede de solidariedade descrita.
Palavras-chave: Correspondência internacional; Solidariedade dos povos; Registro bibliográfico; Memória; Revoluções latino-americanas
CORRESPONDENCIA INTERNACIONAL Y SOLIDARIDAD ENTRE LOS PUEBLOS: UN REGISTRO BIBLIOGRÁFICO
Resumen
Este ensayo analiza la efectividad y la actualidad del concepto de correspondencia internacional en su interrelación con solidaridad entre los pueblos. Reporta la creación, durante los años 60, 70 y 80, de una red de acción política e información de movimientos populares latinoamericanos que utilizaron la correspondencia internacional como una herramienta de solidaridad. Expone el concepto de registro bibliográfico y su papel en la perpetuación de la memoria y ejemplifica esto a través de un registro de un conjunto de obras de correspondencia internacional, que surgen de la red de solidaridad descrita.
Palabras clave: Correspondencia internacional; Solidaridad de los pueblos; Registro bibliográfico; Memoria; revoluciones latinoamericanas
INTERNATIONAL CORRESPONDENCE AND SOLIDARITY BETWEEN PEOPLE: A BIBLIOGRAPHIC RECORD
Abstract
This essay discusses the effectiveness and actuality of the concept of international correspondence in its interrelationship with solidarity between peoples. It reports the creation, during the 60s, 70s and 80s, of a political action network and information of Latin American popular movements that used international correspondence as a solidarity tool. It exposes the concept of bibliographic registration and its role in the perpetuation of memory and exemplifies this through a record of a set of works of international correspondence, arising from the described solidarity network.
Keywords: International correspondence; Solidarity of peoples; Bibliographic record; Memory; Latin American revolutions
Caracterização de correspondência internacional
A figura do correspondente internacional é geralmente identificada com a mídia mainstream, com a geração de fatos, de verdades, que corroboram, de forma efêmera, as perspectivas das classes dominantes para as conjunturas específicas de cada país. A correspondência internacional se caracteriza por uma inserção na realidade imediata pelo autor, ou seja, com a participação dele naquela realidade que relata e em alguns dos riscos que ela apresenta ou, ao menos, com acesso a quem tem essa participação não mediada. Mas, também, pressupõe algum distanciamento, o que lhe dá uma maior credibilidade, inalcançável pelos agentes diretos da ação social. Usando aqui o conceito de que a validação e a eficácia de uma informação consagradora é maior na proporção inversa à proximidade que tenha o emissor em relação aos interesses do objeto consagrado. Conceito defendido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, em L’art de la consécration (BOURDIEU, 2011): “Em termos de legitimidade, nada é mais falso do que a máxima segundo a qual ‘ninguém é melhor servido do que por si mesmo’[2]”.
Propomos neste ensaio que a correspondência internacional não seja definida pela forma textual, nem editorial, mas da perspectiva do autor em relação à realidade histórica imediata descrita. Percebemos aqui dois pressupostos conceituais: participação ou acesso não mediado na realidade sem uma identificação direta em relação aos fatos. De certa forma, subvertemos o termo “correspondência”, que tradicionalmente significa alguém que envia a informação “da origem”, no sentido de proximidade física do tema reportado, propondo que esta proximidade possa ser dada por um acesso privilegiado a informações, contanto que este privilégio não signifique uma identidade com os atores dos fatos.
Consideramos então que, além das reportagens propriamente ditas, grandes relatos e análises e mesmo ficções de conteúdo profundamente histórico, se concebidos nestas condições, são casos de correspondência internacional. Neste sentido consideramos obras históricas como “Dez dias que abalaram o mundo” (REED, 2002), sobre a revolução Russa de 1917, e “Death and life of Dith Pran” (SCHANBERG, 1985), sobre o genocídio cambojano, livro que foi transformado no filme “Os gritos do silêncio”, de 1985, exemplos clássicos de correspondência internacional romanceada.
Se olharmos atentamente os repórteres da grande imprensa que, em alguns momentos, estavam inseridos no espaço das revoluções e insurreições latino-americanas dos anos 60, 70 e 80, pode parecer que eles trabalhavam junto com as organizações e os movimentos populares. Por que eles pareciam estar colaborando? Um dos motivos é que, de imediato, em campo, eles estão protegidos pela organização política que os acolhe, e devem obediência a ela. Uma característica da experiência do correspondente é o pânico sentido por quem não deve ou não pode fugir da obediência à organização da qual ele depende naquela circunstância. O profissional aprende a se mover nessas situações de conflito e acaba, muitas vezes, parecendo simpático a quem o levou para dentro, ao âmago dos acontecimentos. Depois ele sai do controle físico da organização, e pode se expressar mais livremente. Porém, na maioria das vezes, continuam simpáticos aos movimentos. Porque, com os acontecimentos compartilhados, sua visão se modifica, ocorrendo um processo de identificação.
O grande momento histórico dessa experiência de jornalismo aconteceu na Guerra do Vietnã, nos anos 60, onde a presença da TV, ao vivo, fez a correspondência internacional se tornar um fator político e cultural determinante. Muitos consideram que a cobertura pela TV da violência extrema usada durante a Guerra do Vietnã, mudou a posição da população americana em relação à guerra. Foi uma cobertura jornalística descentralizada, feita pelos diferentes meios de comunicação, fora de um controle; que tanto os americanos quanto os soviéticos tentaram posteriormente nas guerras do Iraque e do Afeganistão. É muito difícil conseguir o controle absoluto tentado pelas grandes potências; pois isso só seria possível se o correspondente não participasse do risco inerente à ação, gerando um simulacro. Além disso, ocorre o controle da edição e da tradução.
A correspondência e a solidariedade internacional dos povos
O acesso a uma informação privilegiada, o que valoriza especificamente o produto da correspondência internacional, só se obtém quando se está convivendo com os atores diretos, de alguma forma. Mesmo que o correspondente não esteja no local, é necessário que compartilhe, de certa maneira, ,aquela realidade, como por exemplo, na ação política. A força do movimento dos povos por sua autonomia e liberdade e a solidariedade a eles não prescinde de quem, esteja presente de forma física ou se corresponda com os atores dos eventos, fale dos acontecimentos para quem compartilha condições semelhantes, dentro de uma outra perspectiva, com a visão dos explorados e de sua história imediata.
Mas, e no século XXI? As múltiplas e relativamente fáceis formas de acesso à informação e interação criadas pela internet, diminuem a importância da correspondência internacional, ou não? Do ponto de vista dessa correspondência como arma dos povos para a sua emancipação, não diminui, até aumenta, pois numa situação de excesso de informação, a diferenciação é bem necessária. De certa forma, o correspondente é parte da ação diplomática de um movimento determinado que se corresponde com ele. Por isso, os movimentos tratam tão bem o correspondente e, por isso, às vezes, também os decapitam.
Um movimento que trabalhe, no longo prazo, e que não resolva tudo pela violência, preza que o correspondente se transforme em um agente do processo social que o movimento propõe. Dão informações importantes, convidam o profissional para voltar. O movimento popular tenta manter aquela relação no longo prazo. Apesar de mandar e receber dados para todo lugar, estar e participar é fundamental, pois traz o ambiente concreto da ação e uma compreensão diferenciada dos acontecimentos, construindo redes de solidariedade e ação, onde as informações possam fluir de forma consistente, mesmo que em ambientes repressivos.
A criação de redes de solidariedade, ação e informação latino-americanas
Nas décadas de 60, 70 e 80 foram criadas algumas redes internacionais de solidariedade, ação e informação entre os povos latino-americanos, diretamente ligadas à ação política imediata dos movimentos. A correspondência internacional foi uma de suas atividades centrais com objetivo de viabilizar a mobilização cruzada entre os povos. As informações deste capítulo são provenientes de depoimentos colhidos com um correspondente dos movimentos (SANTOS, 2023) e uma ativista da solidariedade (BARBOSA, 2023).
Antes do exílio forçado pelo acirramento da ditadura brasileira, ativistas brasileiros já estabeleciam relações internacionais com outros movimentos revolucionários e de solidariedade. Desde 1967, era mantida a participação na OLAS – Organização Latino-Americana de Solidariedade – uma organização criada em Cuba, com iniciativa de Allende, que tinha como lema “O dever de todo revolucionário é fazer a revolução”. Mas foi durante o exílio no Chile, pelo caráter massivo que assumiu, que os contatos entre militantes das diversas organizações se ampliaram; porém, ainda de forma clandestina e limitada. Logo após o Golpe, em setembro de 1973, a grande maioria dos ativistas estrangeiros foi presa no Estádio Nacional, no Estádio do Chile e outros presídios, e refugiada em Embaixadas, em Santiago e em algumas cidades do interior. Confinadas nestes locais, as pessoas começaram a se conhecer e, muitos militantes, de diversas organizações, foram enviados juntos ao exílio na França e outros países. No exílio, organizações de vários países estavam em contato direto, tanto de forma aberta como clandestina, o que possibilitou uma grande ampliação das redes. Inclusive com contatos de países da Europa, como Portugal e Espanha.
Naquele momento histórico, a atividade de correspondência internacional dos movimentos populares tendia a ser inteiramente articulada com a ação política. Por exemplo, uma entrevista com Angel Barrajon, representante do governo sandinista na França, publicada no “Companheiro” em agosto de 1979 (SANTOS, 2023), e que faz parte do livro “Os sandinistas aceleram o passo” (id. 1980a), se deu durante a ocupação da embaixada nicaraguense na França, pelo movimento de solidariedade internacional. A ocupação visava impedir os somozistas depostos na Nicarágua de se consolidarem nas representações internacionais ainda não recuperadas pelos poderes revolucionários.
Além da rede direta de contatos políticos, alguns correspondentes se utilizavam de centros de documentação de acesso público, em Paris, onde chegavam todos os jornais do mundo, com dois dias de defasagem, ignorando a crítica da esquerda revolucionária contra a leitura destes jornais “burgueses”. Boa parte do que se divulgava aqui no Brasil, pelos canais de resistência, inclusive sobre os próprios movimentos revolucionários, se originou dessas mídias mainstream.
Como exemplo das dificuldades a serem enfrentadas para o estabelecimento de uma comunicação durante uma ditadura, um correspondente (ibid.) conta que também aprendeu a encadernar livros, para esconder microfilmes nas capas, e poder enviar notícias para o Brasil. E a sua companheira, professora na Aliança Francesa, conseguiu enviar os livros por meio de seus alunos pilotos e comissários da Air France, que aceitavam trazer encomendas para o Brasil. Eu mesmo lembro de, ainda criança, ir ao aeroporto Santos Dumont com meu tio, Roberto Martins, ativista recém- -anistiado, para achar alguém, de forma aleatória, que pudesse levar um envelope com material para o jornal Movimento, a ser entregue em mãos, a outro militante, que aguardava no aeroporto em São Paulo. Uma criança presente aumentava a credibilidade de um pedido inocente. Como disse Chico Buarque, em “Meu caro amigo” (BUARQUE, 1976), “O correio andou arisco”.
No final de 1979, com a abertura “lenta e gradual” e a Lei da Anistia, os exilados começam a voltar. Nesta época, foi criado o Cosplam – Comitê de Solidariedade com os Povos Latino-americanos – (BARBOSA, 2023) por iniciativa de Bayard Boiteux, do PDT – Partido Democrático dos Trabalhadores – partido que estava também em formação sob a liderança de Leonel Brizola. Bayard esteve em Manágua e voltou com a incumbência de construir uma rede de solidariedade à Nicarágua no Brasil. Um pouco antes da vitória da Revolução Sandinista, foi organizado um grande ato na ABI – Associação Brasileira de Imprensa, com a participação de militantes das várias organizações existentes, anunciando que o Cosplam estava sendo formado. Bayard tinha montado uma grande rede de solidariedade, tendo estado na Argélia, na Nicarágua e em outros países, passando credibilidade. Uma das atividades prioritárias da rede formada era a correspondência internacional, com a criação e divulgação de conteúdo informativo de solidariedade dos povos.
Com o desenvolvimento do processo de redemocratização, a FMLN[3], por exemplo, passou a ter um representante não oficial no Brasil (ibid.). Mas, com relação à Nicarágua, o seu consulado no Rio de Janeiro ainda permanecia com um antigo diplomata de carreira. Não havia condições para ocupar a embaixada, ainda era ditadura, mas em dado momento, os militantes do Cosplam começaram a questionar a autoridade do cônsul. Com o passar do tempo, vendo a Frente se consolidar, o cônsul começou a “colaborar” e modificou sua relação com o Cosplam, reconhecendo-o como um canal de apoio à nova ordem, à qual ele pretendia se aliar, e começou a disponibilizar notícias e informações (ibid.).
Nesta época, participavam do Cosplam cubanos, uruguaios, argentinos, chilenos, peruanos e bolivianos. Foi criada uma coordenação nacional e começou a se formar uma rede realmente nacional, com comitês de solidariedade e atividades culturais em todo Brasil, organizando, inclusive, intercâmbio de artistas e outras atividades.
Foi nestas condições históricas e com objetivos de atuação como força de solidariedade, reflexão e ação dos povos latino-americanos, que foram escritos os livros que aqui serão apresentados. Consideramos essas publicações um exemplo de como a atividade de correspondência internacional pode criar um efeito político imediato, mas também servir para criar memória dos movimentos populares.
Registro bibliográfico e digitalização como fixação de memória do que foi muitas vezes conjuntural e imediato
A correspondência internacional, por sua característica de ser um jornalismo com uma possibilidade de inserção mais direta na realidade social, e que tem uma legitimação social superior ao conteúdo produzido diretamente pelos participantes dos conflitos sociais, é um objeto de alto valor como memória. Mas é quase sempre considerado como conteúdo de validade efêmera, pois muitas vezes é produzido e editado com objetivos conjunturais e imediatos. Neste sentido, consideramos que o registro bibliográfico e a digitalização, do que originalmente eram apenas documentos impressos, servem ao objetivo de fixação da memória, mantendo-a viva. Fixação da memória aqui entendida com o caráter de preservação histórica, como o que persegue o arqueólogo ao manter intactos os desenhos pré-históricos nas cavernas. Passando ao campo da Ciência da Informação, precisamos fazer uma preservação da história, à medida que não conseguimos tirar tudo de um objeto de estudo. “Quando se fazia uma pesquisa se tendia a descartar as fontes no final do processo, hoje se tem um cuidado maior. A conclusão era o que importava, não se pensava em revisitação” (SANTOS, 2023).
Por que é importante esta possibilidade de revisitar o que o registro e a preservação criam? Um bom exemplo está na descoberta dos túneis utilizados pela resistência ao nazismo na França. “Em pesquisas anteriores, esses túneis foram fechados. E agora os redescobriram. Mas… como é que não descobriram isso antes? Descobriram. Só que, quando os enterraram, pensaram: “já sabemos tudo o que precisamos saber sobre isso” (ibid.). E, no caso da preservação histórica, se mantém a possibilidade de pesquisar de novo e rever a fonte primária da informação.
Um exemplo da necessidade de registro é a importância de manter elementos da forma nos registros, pois a forma também revela conteúdos, ideias e concepções. Porém, a memória é muitas vezes também percebida como uma imagem, como aquilo que ficou evidente, e não se percebe que o registro, como um todo, tem muitas possíveis leituras, profundidades e possibilidades.
Neste sentido, o registro bibliográfico cumpre um papel fundamental. Ele permite voltar o mais perto possível da realidade imediata e observar coisas que não tinham sido vistas na época, ou a que não foi dada a devida importância. E a digitalização e disponibilização na internet de um registro histórico permite abrir um leque de possibilidades de acessos a essa memória.
Um registro de correspondência internacional em curso
Na diáspora da esquerda Latino-Americana, que sucedeu ao encarceramento de milhares de militantes no Estádio Nacional de Santiago, o arquiteto e jornalista Nilton Bahlis dos Santos, que até o advento da internet assinava apenas Nilton Santos, foi um dos atingidos diretamente pelo golpe militar no Chile, que completa 50 anos neste 11 de setembro de 2023. Durante o exílio e após o seu retorno ao Brasil, participou das redes de solidariedade descritas e escreveu artigos para revistas francesas e jornais de oposição ao regime militar no Brasil (SANTOS, 2023). Esse trabalho de correspondência Internacional também resultou em vários livros, alguns editados na época dos acontecimentos e outros no decorrer das décadas seguintes[4]:
- Chile, 1973 – O estádio era mais alegre (id., 2010)
- Nicarágua, 1979 – Os sandinistas aceleram o passo (id., 1980a)
- Nicarágua, 1980 – E também lhes ensine a ler… (id. 1990 e id. 2016)
- El Salvador, 1980 – Concepções e prática dos revolucionários salvadorenhos (id. 1980b)
- El Salvador, 1982 – Tendo à frente um povo em armas (id. 1982)
- Granada, 1983 – Granada: um pequeno povo que resolveu libertar-se… (id. 1983)
A Arquimedes Edições editou alguns desses livros na década passada[5], e no momento está empenhada em disponibilizar, em forma digital e impressa, parte dessas obras, como especificamos individualmente nas análises de cada livro, apresentadas no próximo capítulo deste ensaio.
Estes relatos históricos têm formas textuais e processos de produção extremamente diversos, mas, mesmo assim, consideramos todos como exemplos de ações de correspondência internacional. Todos apresentam os dois pressupostos conceituais citados anteriormente: inserção na realidade imediata, através da participação em uma rede de apoio mútuo, e algum nível de distanciamento, por serem obras de uma ação de solidariedade, e não de um agente direto nos conflitos relatados. Vão desde reportagens sobre o dia a dia da revolução nicaraguense, publicadas semanalmente durante o correr dos acontecimentos, em “Os sandinistas aceleram o passo” (id., 1980a), que é um caso típico de correspondência internacional, até um romance autobiográfico, “O estádio era mais alegre” (id. 2010), tendo diversas formas literárias, como análises metodológicas da práxis política (id., 1980b) e descrição detalhada de ações de poderes revolucionários vitoriosos (id. 1982). Alguns são fundamentalmente narrativos, contam histórias, outros descritivos e detalhados, enquanto alguns dissertam em análises profundas. Mas todos partem de uma não distância e uma não identidade total com a História em curso (com H maiúsculo) e isso nos permite caracterizá-los como partes de uma atividade de correspondência internacional, empenhada na solidariedade dos povos e sua ação revolucionária.
Apresentamos a seguir análises de algumas dessas publicações, como exemplos do impacto direto da correspondência internacional na solidariedade entre os povos, da criação de memória dos movimentos e de um registro bibliográfico em curso. Com isso pretendemos transformar em memória aquilo que só pôde ser concebido pela inserção imediata na realidade social, que a correspondência internacional propiciou.
Cinco livros imersos em dez anos de golpes, revoluções e insurreições
O PRIMEIRO É O ÚLTIMO
O estádio era mais alegre – Chile, 1973
(SANTOS, 2010) Arquimedes Edições, brochura colada de 88 páginas[6]
Autobiografia romanceada
Começamos pela autobiografia romanceada “O estádio era mais alegre”, editada no Brasil, em 2010, mas que se passa, principalmente, nos dias imediatamente após o golpe militar no Chile, ocorrido exatamente há 50 anos. Mas uma autobiografia pode ser um caso de correspondência internacional? O livro trata de assuntos pessoais, mas sob a perspectiva de quem assiste os acontecimentos extremos à sua volta, numa realidade em que está inserido pelo exílio, onde, portanto, o protagonismo histórico dos eventos não é dele. Isso fica evidente nos trechos abaixo:
Depois vivi minha primeira experiência internacional de golpe. Estava de passagem no Uruguai, indo para o Congresso da FUA na Argentina, quando aconteceu o golpe de Pacheco Areco. […]
Para completar a conta de mentiroso, ainda tive a sétima experiência, a europeia, em novembro de 1975, em Portugal. No início desse ano tinha ocorrido a “revolução dos Cravos” que derrubou a ditadura salazarista e colocou as massas na rua. Eu chegara a Lisboa no começo desse mês e pude ver manifestações populares acompanhadas de tanques e soldados com bandeiras e cravos vermelhos, insurretos… (ibid., p. 10).
Esta perspectiva de observador não mediado do acontecimento histórico internacional que relata é o que caracterizamos aqui como correspondência internacional.
O livro nos conta que, logo nas primeiras horas da manhã de 11 de setembro de 1973, os militares tomaram a cidade de Valparaíso, no litoral, e seguiram para Santiago, a capital. No dia seguinte, o Estádio Nacional em Santiago passou a ser usado como prisão improvisada e cerca de 40 mil presos políticos passaram por lá, muitos deles estrangeiros, inclusive o autor. É nesse cenário que se passa o pequeno romance “O estádio era mais alegre”. Inicialmente estruturado em fichas, no começo dos anos 80, como parte de palestras de cunho político, terminou sendo editado, em 2010.
Apesar de todos os acontecimentos do livro, que vão de 1969 até 1975, serem historicamente verídicos, a narrativa não se preocupa com a precisão. O livro foi escrito como uma obra de ficção, se aproximando do realismo fantástico latino- americano.
CRUZADA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO DA NICARÁGUA
E também lhes ensine a ler… – Nicarágua, 1980
(SANTOS, 1990) Ayuri, brochura costurada e colada de 208 páginas e 2ª edição atualizada e diminuída (SANTOS, 2016), Arquimedes Edições, brochura, 124 págs.[7]
Relatos e análises da ação dos revolucionários no poder
No final de 1980, o autor esteve na Nicarágua para acompanhar de perto o processo revolucionário de que já participava como correspondente. Esta experiência transformou a Cruzada Nacional de Alfabetização em tema de sua tese de mestrado, defendida no IPPUR em 1985, e posteriormente, na criação deste livro. A relação de proximidade política entre o autor e as autoridades revolucionárias e a presença física durante a Cruzada, permitiu ao autor uma visão “de dentro” do empreendimento relatado, uma inserção não mediada com o acontecimento histórico. Mas afinidade não é identidade, o que fez com que este relato não resultasse numa ação de comunicação institucional dos sandinistas. O que nos faz caracterizá-lo como correspondência internacional e parte das ações de solidariedade entre os povos.
A REVOLUÇÃO DESCONHECIDA. INTERVENÇÃO VITORIOSA?
Granada: um pequeno povo que resolveu libertar- se…, Granada, 1983
(SANTOS, 1983) EDIPLAN, brochura de 80 páginas.[8]
Relato histórico e conjuntural
Este pequeno livro foi escrito no calor dos acontecimentos e lançado, pela Ediplam[9], ligada ao Cosplam, cerca de 45 dias após a bárbara e covarde intervenção perpetrada pelos Estados Unidos, iniciada em 25 de outubro de 1983, na pequena ilha de Granada, no Caribe. Invasão que suprimiu violentamente a revolução granadina. A obra não teria sido possível e nem necessária, se não existisse no Brasil, naquele momento, o movimento de solidariedade internacional e a sua rede de informações e correspondência internacional.
A brochura registra a história dessa revolução, iniciada em 13 de março de 1979. A primeira revolução vitoriosa na América depois de Cuba, e a sua brutal interrupção pela intervenção de um país, literalmente, milhares de vezes maior e mais poderoso.
O DIA A DIA DE UMA REVOLUÇÃO TRIUNFANTE
Os Sandinistas aceleram o passo – Nicarágua, 1978 / 1980
(SANTOS, Editora Avante, 1980, caderno grampeado de 63 páginas[10])
Reportagens, análises, documentos e entrevista
Este livro é o caso mais típico, mais facilmente reconhecível, de jornalismo de correspondência internacional, entre os aqui relatados. É uma compilação de textos publicados em periódicos, no mesmo momento histórico dos fatos narrados e que foram escritos a partir de informações e perspectivas disponíveis apenas pela correspondência internacional criada em torno dos movimentos de solidariedade.
A publicação descreve que, em sua ofensiva de junho de 1979, a combinação de uma grande ação de massas e de uma coesa vanguarda político-militar indicava a força da Revolução Sandinista, que tinha sido dada como derrotada pela imprensa burguesa, após a insurreição de setembro do ano anterior. Exilado na França, o autor começa a usar a rede de informações viabilizada pelo exílio e pelos movimentos de solidariedade internacional[11] para exercer sua atividade de correspondente internacional, produzindo artigos semanais sobre a Revolução Sandinista para o jornal “Companheiro”, editado entre 1979 e 1981, pelo MEP – Movimento pela Emancipação do Proletariado – organização clandestina da esquerda brasileira.
AÇÃO POLÍTICA OU AÇÃO MILITAR: O NÃO DILEMA
Concepções e prática dos revolucionários salvadorenhos – El Salvador, 1980
(SANTOS, 1980) Editora Avante, caderno grampeado de 76 páginas[12]
Análise metodológica da práxis da FDR[13]
Este segundo volume da coleção “Internacionalismo Proletário” trata da unidade na diversidade, construída durante o próprio processo insurrecional e de massificação do movimento popular Salvadorenho. Pensado como subsídio teórico sobre a viabilidade de uma frente ampla nos movimentos populares, o artigo trazia informações de uma organização, em pleno processo de luta revolucionária, para um público externo. Informações oriundas diretamente das forças revolucionárias, mas analisadas pela perspectiva da internacionalização da experiência em curso.
O texto foi planejado para ser um apêndice teórico de um livro sobre o processo revolucionário de El Salvador, mas não chegou a ser publicado desta forma. Por isto, parte da suposição de que o leitor saiba que, em 18 de abril de 1980, foi dado um importante passo no sentido da unificação do movimento popular e democrático de El Salvador, com a constituição da Frente Democrática Revolucionária (FDR). A história detalhada do movimento revolucionário Salvadorenho é relatada no livro “Tendo à frente um povo em armas” (id. 1982).
Conclusão
Mais que concluir, neste ensaio pensamos em abrir uma linha de estudo e análise de muitas obras. Propomos que correspondência internacional seja entendida como a produção de fatos históricos, por quem não é protagonista dessas histórias, mas tem acesso privilegiado durante o correr dos próprios acontecimentos, por estar presente ou por participar de uma rede que lhe permite esse privilégio. Consideramos essa produção uma ação importante para a solidariedade entre os povos, possibilitando tornar mais próximos, mais presentes, fatos de lutas sociais distantes e, possivelmente, torná-los perenes, torná-los memória, por meio de registros bibliográficos. Fatos estes que tendem a ser tratados como de interesse efêmero pela mídia e de perspectiva demasiadamente enviesada, se relatados pelos atores sociais diretamente envolvidos.
À guisa de conclusão apresentamos a seguir dois exemplos provocativos de obras clássicas a serem analisadas.
Será que podemos pensar “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” (MARX, 2011) como correspondência internacional? A obra é normalmente tratada como marco da sociologia política, pois é o livro onde Marx se utiliza do materialismo histórico em uma situação histórica específica, sendo, provavelmente, a primeira vez em que uma teoria geral explícita do movimento da história fundamenta a análise de uma conjuntura imediata. Mas tem também um caráter jornalístico. Foi escrito no calor dos acontecimentos, entre dezembro de 1851, mesmo mês do golpe de estado de Luís Bonaparte, e fevereiro de 1852, e teve sua primeira publicação em maio de 1852, na revista “Die Revolution”. Um jornalismo de quem tem acesso privilegiado, pela participação no movimento socialista internacional, mas não é protagonista.
O jornalista Euclides da Cunha era brasileiro, do Rio de Janeiro, a Guerra de Canudos aconteceu no sertão da Bahia e seu grande romance sobre esse conflito, “Os sertões” (CUNHA, 1950), tinha como público presumível a elite intelectual brasileira, sendo uma obra “nacional” sob muitos aspectos. Porém, é claramente um relato de quem não se identifica com a realidade social e geográfica que apresenta, mas na qual está inteiramente “imerso”. Ao propormos pensar “Os sertões” como “correspondência internacional” relativizamos também o conceito de “internacional”, trazendo a conotação de “estrangeiro”, de quem vem de outra realidade.
Bibliografia
BARBOSA: E. depoimento. Entrevistador: A. Celestino. Rio de Janeiro: arquivo de áudio em formato m4a, 2023.
BOURDIEU, P. L’art de la consécration. Actes de la recherche en sciences sociales, n° 190. Paris: Seuil, 2011. Disponível em: <https://www.monde-diplomatique.fr/mav/122/BOURDIEU/51886>. Acesso em: 07 jun. 2023.
BUARQUE, C. Meu caro amigo. In: Meus caros amigos, Rio de Janeiro: Phonogram/Philips, 1976.
CUNHA, E. Os sertões. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1950.
MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
REED, J. Dez dias que abalaram o mundo. Tradução: Armando Gimenez. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2002.
SANTOS, N. B. dos. Os sandinistas aceleram o passo. Rio de Janeiro: Avante, 1980a.
_______________. Concepções e prática dos revolucionários. Rio de Janeiro: Avante, 1980b.
_______________. Tendo à frente um povo em armas. Rio de Janeiro: Mario Pedrosa, 1982.
_______________. Granada: … Um pequeno povo que resolveu libertar- se … Rio de Janeiro: Ediplam, 1983.
_______________. E também lhes ensine a ler… Rio de Janeiro: Ayuri, 1990.
_______________. O estádio era mais alegre. Rio de Janeiro: Arquimedes Edições, 2010.
_______________. E também lhes ensine a ler… 2. ed. Rio de Janeiro: Arquimedes Edições, 2016.
_______________: depoimento. Entrevistador: A. Celestino. Rio de Janeiro: arquivo de áudio em formato m4a, 2023.
SCHANBERG, S. Death and life of Dith Pran. Londres: Penguin Paperbacks, 1985.
[1] Arquimedes Martins Celestino, Tecnólogo em Gestão Financeira pela Universidade Estácio de Sá, Brasil, editor da Arquimedes Edições, ted@arquimedesedicoes.com.br, ORCID 0009-0009-3463-8962, Lattes https://lattes.cnpq.br/1013203815394291.
[2] En matière de légitimité, rien n’est plus faux que la maxime selon laquelle “on n’est jamais mieux servi que par soi-même”.
[3] Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional de El Salvador.
[4] As obras já disponíveis em forma digital são acessíveis gratuitamente no link https://arquimedesedicoes.com.br/nilton-bahlis-dos-santos.
[5] “O estádio era mais alegre” (SANTOS, 2010), e “E também lhes ensine a ler”, 2ª edição atualizada e reduzida (SANTOS, 2016).
[6] Disponível para download integral gratuito (PDF e ePUB) e venda de exemplares impressos no link https://arquimedesedicoes.com.br/estadio.
[7] Disponível para download integral gratuito (PDF e ePUB) e venda de exemplares impressos no link https://arquimedesedicoes.com.br/cruzada-de-alfabetizacao.
[8] Está sendo reeditado pela Arquimedes Edições, com previsão de lançamento em setembro de 2024. Estará disponível para download integral gratuito (PDF e ePUB) e venda de exemplares impressos no link https://arquimedesedicoes.com.br/granada.
[9] Edições dos Povos Latino-Americanos.
[10] Está sendo reeditado pela Arquimedes Edições, com previsão de lançamento em setembro de 2023. Estará disponível para download integral gratuito (PDF e ePUB) e venda de exemplares impressos no link https://arquimedesedicoes.com.br/sandinistas.
[11] Sobre a construção dessa rede veja, na página 4 deste ensaio, o capítulo “A criação de redes de solidariedade, ação e informação latino-americanas”.
[12] Será reeditado com um adendo histórico pela Arquimedes Edições, com previsão de lançamento em 2024.
[13] Frente Democrática Revolucionária, frente ampla das forças populares em El Salvador.